Por ANDRÉ KAMEDA

 “Dizem que o Japão foi feito de uma espada. Dizem que os velhos deuses colocaram a lâmina fria no mar e, quando a puxaram de volta, quatro gotas perfeitas caíram de volta no mar. E aquelas gotas se tornaram as ilhas do Japão.”
Frase introdutória do filme O Último Samurai

 

Aviões B-29 sobrevoam cidades japonesas e despejam bombas sobre milhares de casas e prédios comerciais, fábricas e pontes. Um bombardeio que não cessa, uma demonstração ao mundo do poderio militar norte-americano sobre resistentes orientais. Lá do alto, os soldados da Força Aérea não imaginavam que estariam mudando a trajetória de quase toda a população japonesa.

Porém, não fosse a 2ª Guerra Mundial eu provavelmente não teria nascido. Esta história já começa com os horrores que a guerra impingiu aos japoneses e de como ela forçou ainda mais a emigração iniciada no começo do século passado.

De 1908 a 1982, o Brasil recebeu cerca de 65% dos emigrantes do Japão. Dentro dessa estatística está o sr. Shinichi Kameda, que em 24 de dezembro de 1956 desembarcava com a mulher e os quatro filhos no Porto de Santos (SP), na sua segunda tentativa de aportar em terras brasileiras. Era um sujeito magro, de rosto afilado e triangular, com as maçãs do rosto sobressalentes. Tinha uma estatura alta para os padrões de sua etnia. Morava na província de Kumamoto, em Kyu-shu, a ilha mais ao sul das quatro principais que formam o arquipélago japonês. Quando viu a família acenando para o America Maru, um navio que trazia aproximadamente mais 400 pessoas e que viajara durante dois longos meses pelo Oceano Pacífico, os pequenos olhos de Shinichi marejaram.

Antes disso, na sua primeira tentativa aos 12 anos, uma lesão nos olhos o impediu de embarcar para o Brasil. Teve de conviver com uma família desconhecida até completar 18 anos, quando o Exército japonês o convocou para juntar-se aos combatentes na Ilha de Formosa, hoje conhecida como Taiwan. No front, foi atingido por balas na coxa e no braço, o que o afastou dos combates. Conheceu na ocasião uma enfermeira que perdera a mãe aos 12 anos e que, durante a guerra, tratava dos soldados feridos. Chamava-se Tamae e era filha única. Teve com ela cinco filhos, um dos quais morreu por causa dos bombardeios. Da época, uma imagem difusa povoa a mente dela: os cidadãos ostentando placas em seus peitos contendo as letras A, B, O e AB. Elas indicavam o tipo sangüíneo, em caso de necessidade de uma transfusão.

Quando chegou ao país, Shinichi foi morar com as irmãs na capital paulista. Assim permaneceu por oito meses, quando alugou uma casa e iniciou atividade própria, na área de tinturaria. Conseguiu aumentar os proventos da família, construiu casa própria e teve mais quatro filhos. Era freqüente ser acometido pela ‘neurose da guerra’ e aos 43 anos veio a falecer por conseqüência desse adoecimento. Shi kata ga nai. Não teve jeito. A esposa e os dois filhos mais velhos, um dos quais o meu pai, deram seguimento às atividades da tinturaria, enquanto os irmãos mais novos foram estudar. Como segundo irmão mais velho, meu pai, Sumio, teve de se virar junto com o primogênito para sustentar os irmãos. Vendeu frutas na rua, trabalhou em uma indústria de sapatos, chegou a vender enciclopédias de porta em porta. Era uma rotina dura, amortecida apenas pelos bailes de fim de semana da colônia japonesa. Num desses bailes, numa noite fria de julho de 1970, conheceria a mulher que mudaria sua vida, na boate Paratodos, no bairro de Santa Cecília. Chamava-se Queico, tinha 19 anos e acabara de concluir o magistério.

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A história de Queico remonta a tempos mais antigos. No início do século passado, na ilha mais ao sul do arquipélago japonês, chamada Okinawa, as pessoas se organizavam em clãs, denominados shimas. Os habitantes dessa ilha têm a pele ligeiramente escura, semelhantes a de índios, e pela proximidade com o Havaí, o aspecto físico é bastante parecido com o desse povo. Kafuku Omine, o pai de Queico, pertencia a um dos clãs mais importantes da ilha. Ainda jovem, conheceu Matsu, uma garota de olhar ingênuo e corpo esguio, pertencente a um outro shima. Não demorou muito para que casassem. Ele tinha 20 anos e ela, quinze. Tiveram quatro filhos e na década de 30 vieram para o Brasil com um deles, antes do início da guerra. Dois dos filhos que ficaram no Japão, um homem e uma mulher, morreram por ocasião dos bombardeios. A outra filha, que sobreviveu à guerra, veio para o Brasil posteriormente.

A família fixou-se então no interior paulista e Kafuku começou a trabalhar na lavoura como arrendatário, junto com a esposa e os filhos. Tinham vizinhos imigrantes, em geral italianos, e a impossibilidade de comunicação os levou a um relativo isolamento. Ademais, a falta de opções de entretenimento rendeu mais nove filhos.

A situação econômica foi melhorando e Kafuku adquiriu um comércio no centro de Marília, que funcionava como um misto de mercearia e restaurante. A localização privilegiada, próximo à prefeitura e ao quartel militar, propiciou a ele o início de muitas amizades, além de fazer o negócio prosperar. De modo que os filhos mais velhos puderam trabalhar fora e iniciar suas vidas profissionais. O primogênito foi trabalhar como mecânico numa oficina; o segundo, como ajudante em uma drogaria; o terceiro, como frentista em um posto de gasolina.

Por problemas de saúde de uma das filhas, Kafuku veio com a esposa para a capital buscar tratamento médico. Alugou uma casa e, aos poucos, todos os filhos se transferiram para São Paulo. Iniciou atividades de costura, com máquinas compradas de um primo que possuía uma confecção. Como a atividade não prosperava, resolveu comprar uma barraca e começou a vender pastéis em feiras livres. Os filhos foram casando, saindo de casa e constituindo família.

Queico, a caçula de 11 filhos, fez o magistério e, logo que o concluiu, passou num concurso da Prefeitura de São Paulo. Ao mesmo tempo em que trabalhava como professora, fez o curso superior de Letras na Faculdade Farias Brito, em Guarulhos. Era uma rotina tão dura quanto a de Sumio, um rapagote elegante que conheceu num baile da colônia japonesa e que ostentava longas madeixas que chegavam aos ombros. Namoraram durante longos nove anos, casaram-se depois de muita insistência de Sumio e tiveram três filhos, duas mulheres e um homem. Atualmente é aposentada, tem 55 anos e até pouco tempo atrás pagava todas as despesas do filho André; hoje é ele quem paga. Mas essa já é uma outra história.