Por FRED LINARDI 

Pena

O Teatro Mágico se prepara para apresentar a música “Pena” e Anitelli anuncia que a composição é de sua “irmã” Maíra. O boneco Roberval entra no palco em direção ao trapézio, onde permanecerá apresentando ao público o número de sua especialidade. Tais malabarismos não poderiam cair melhor no contexto da música “Pena”, que retrata a dura realidade do palhaço e de qualquer outro artista disposto a encarar a amarga luta por um lugar no palco. Essa difícil situação foi presenciada por Maíra logo quando ela aceitou o convite de integrar-se à trupe. 

Acabada a temporada inicial do Teatro Mágico, era preciso começar do zero novamente. Sem lugar para tocar, sem dinheiro para montar novos espetáculos, Fernando Anitelli e Louis Holden, o sonoplasta da trupe e amigo de infância de Anitelli, decidiram fazer uma festa para arrecadar fundos. A música ficaria a serviço de Holden que, com sua pick-up de DJ faria o som do Teatro Mágico do Espaço. As músicas do grupo remixadas ao som eletrônico agitariam a galera que pagaria R$10,00 de entrada.

Naquele mesmo dia, a noite paulistana ofereceu aos jovens artistas um horrível temporal sugerindo que, sim, o grupo estava indo rumo ao espaço. As ruas alagaram, as enxurradas eram fortes e parecia que o público não ia ter como chegar até o lugar, se é que sairiam de casa. O grupo foi até a calçada e, enquanto via o trabalho daquele dia ir junto à água na sarjeta, Anitelli arregaçou as barras da calça e foi em direção à esquina, onde a CET já havia colocado um cavalete interditando a rua. Depois de subir a rua e pendurar o cartaz do Teatro Mágico na obstrução, Anitelli ficou na esquina, indicando um caminho alternativo àquela rua para os carros que passavam.

Mas não adiantou: no final da noite, ele se encontrava numa mesa da festa, contando as notas de dinheiro que cinqüenta gatos pingados deixaram no caixa. Maíra também estava lá, observando a situação daquele artista, a cara de decepção, assim como a cara do técnico de som que fora contratado, esperando receber sua parte para poder ir embora.

A garota via aquilo com indignação. Como alguém com um trabalho tão bom, com tanto talento, tem que passar por isso? Isso é muito injusto. Tanto lixo tocando por aí, com todas as oportunidades, enquanto esse cara tem que ficar nessa situação.

Ao chegar em casa, mais uma vez, sentou para escrever. Mas agora o que viria era uma poesia:

O palhaço pena quando cai o pano
Sorriso em ingressos, folia em números
Talento transformado em cédulas
Célula morta em decomposição

O trovador pena quando cai o pano
Acordes em oferta, cordel em promoção
Talento metamorfoseado em quilates
Música rara em liquidação

O poeta pena quando cai o pano
Verso em tiragem, rima em porcentagem
Talento provado em papel-moeda
Poesia tarifada em cifrão

O artista pena quando cai o pano
Museu em obras, obra em leilão
Talento expresso em código de barra
A matemática da arte em papel de pão
 
Ao ver a poesia, Anitelli logo comemorou: aquilo dava música! Só precisava dar umas mexidas para sincronizar com uma melodia. Mas a mudança de tom da música se deu quando ele adicionou o refrão, demonstrando a visão da vida e da sua própria condição como artista:

E quanto o nó cegar, deixa desatar em nós
Solta a prosa presa, luz acesa
Já se dorme um sol em mim maior
Eu sinto que sei que sou um tanto bem maior!
 
 

O Teatro Mágico do cotidiano

“Basta apenas um nada para que se produza uma centelha”
Harry Haller, o “lobo da estepe”,

O fato de o Teatro Mágico ser um projeto em evolução, ainda é um trabalho paralelo dos integrantes. Por exemplo, a boneca Donela (Daniela Homsi), a flautista que também trabalha como tatuadora durante o dia; a Gabriela Veiga, que é acrobata nas tiras de tecido e faz faculdade de biologia (depois de ter vivido numa comunidade auto-sustentável na Amazônia), faz estágio na área e treina seus movimentos numa árvore de uma praça no bairro do Brooklin, junto ao boneco “Roberval”, que faz trapézio. Há histórias infindáveis entre as vidas que se cruzam naquele palco e até mesmo fora dele.

O Teatro Mágico de Anitelli, ao contrário do de Herman Hesse, abre suas portas para quem quiser entrar e estiver a fim de brincar. Mas o artista logo avisa, entre uma música e outra: aqui brincamos de pensar. E a base de seu pensar em sua arte também está ligada ao clássico literário. As múltiplas facetas envolvem a história do Lobo do Estepe e convidam à reflexão de todos o seres humanos. Aquele palhaço em cima do palco reduz a velocidade da canção e, num intervalo das músicas tenta explicar o sentido daquilo tudo. Sabe… a gente é composto por vários personagens. Nós estamos aqui com a cara pintada de palhaço, mas não é para ser engraçado, não; coisa que a gente nem é. O fato é que todos somos personagens. Vocês são personagens. Para ir na aula, temos um personagem; para ir namorar, somos outro personagem; em casa, outro… e assim vai…

A maquiagem do dia-a-dia é mais invisível do que a do nariz de palhaço. Mas Anitelli não questiona o fato de cada um usar os personagens que precisa ou deseja, mas sim o uso que cada um faz dele. As pessoas acham que o mundo é como é agora, que as coisas que acontecem agora são assim e ponto final. Não. Não são assim. A gente tem a possibilidade de modificar esse texto… esse teatro mágico do nosso cotidiano.

Depois de quase três anos de existência, mais de dois mil CDs vendidos por R$5,00 nos finais dos shows, Fernando Anitelli surpreende com o caminhar desse sonho. Mas ainda não chegou ao fim. O ponto final dessa idealização é que o Teatro Mágico possua sua própria lona e saia pelas cidades. No meio do picadeiro, a trupe continuará a passar sua mensagem, com os bonecos de pano pulando com a magia da música e interagindo com o público vidrado nessa mágica.

A mensagem, no entanto, tende a permanecer a mesma. Aquela que Anitelli costuma passar quando o show está terminando, sempre com seu jeito manso e romântico de falar. É chegada a hora… o Teatro Mágico não acaba agora. Mas é agora que ele começa. Qual vai ser o personagem que vocês vão vestir lá fora? Vamos encher a realidade de alegria e felicidade… E o “teatro mágico” do cotidiano, de fato, continua da porta para fora. E quando a porta se abre para indicar a saída, a trupe espera ter plantado o espírito disposto como o do palhaço. Como ilustra uma das músicas:

Iria só até o fim
daria tudo e mais um pouco de mim
Separa um tanto que o outro eu te dou
separa a chuva pra curtir uma flor

* Ao contrário do Teatro Mágico, essa narrativa se encerra aqui. Mas se você perdeu alguma parte, clique nos links:
Parte I
Parte II
Parte III