Por WAGNER HILÁRIO
Plá!
“Puta que pariu!”, berra e dá um soco no volante o grandalhão que dirige um fusca marrom, dentro do qual parece o Zé Colméia em cima de uma bicicleta.
“Puta que pariu”, berra e dá um soco no volante o baixinho, com cara de capanga do Al Capone, só que sem o terno preto com listrinhas brancas, motorista do gol bolinha branco que encheu o pára-choque traseiro do fuca bala.
“Puta que pariu”, penso eu, de saída para uma viagem de férias em família. Se fosse comigo, nem sei o que faria. No caso do um, acho que tentaria matar o baixinho. No caso do outro, ia ter de engolir meu chilique. Sem razão não dá pra berrar.
Eu estava com meu gol bolinha chumbo à frente dos carros que formavam a fila da direita. O grandalhão e seu fusca estropiado encabeçavam a fila da esquerda. Paramos no farol de um cruzamento. O fusca parou ainda antes de mim, já que estava um pouco à frente. Vim na seqüência, ao lado, e nem me preocupei com retrovisor, o farol ficou vermelho antes mesmo de o fusca parar. Quem seria o insano a vir no gás naquela trecho? O baixinho do gol. Felizmente não estava atrás de mim.
O fato é que o grandalhão parou, eu parei do lado e o gol bolinha branco foi parado, alguns segundos depois. Olhei pro lado e li nos lábios do grandalhão o “puta que pariu” pós-susto. Olhei para trás e li o “puta que pariu” do baixinho, que parecia não sentir culpa, parecia vítima do destino, da própria desatenção e ainda do grandalhão, “otário”, que não aproveitou o início do vermelho.
“Que merda! Passa nessa porra!”, deve ter pensado o baixinho.
Ele desceu, cara de folgado, camisa branca e calça jeans. O carro parecia ser da empresa – trazia uma marca estampada na porta do passageiro – para qual ele parecia trabalhar. Havia ainda um outro homem com ele, com um leve riso besta pregado na face, no banco de passageiro da frente. O grandão desceu; celular na cintura, camisa mostarda e calça jeans escura, fora de moda. Tinha cara de agro-empresário. Óculos de grau discreto no rosto. O fusca não combinava com ele.
Como o baixinho era dois e o grandão era grande, eles deixaram os respectivos “puta que pariu” de lado e se comunicaram, rapidamente, de maneira civilizada e pacífica; mais com os olhos do que com a boca. Combinaram que parariam adiante, num posto próximo, visível de onde estávamos.
Eu assistia, fazendo comentários com a minha esposa, tirando impressões em voz alta. O grandão parecia um sujeito azarado. Ao ver seus olhos, tive a impressão de que diziam “me ferrei de novo”. Não sei onde ele havia se estrepado antes, mas era isso o que lia nos olhos do pobre grande homem. Ele montou no fusca e antes do farol ficar verde, colocou-o na frente do meu, sobre a faixa de pedestres. Foi então que percebi que minha impressão acerca da falta de sorte do cara procedia. A frente do gol estava lisa, intocada. O pára-choque do fuqueta cor de cocô estava caído, grudado à lataria. Zuado.
A idéia do grandalhão, acredito, era que quando o semáforo nos permitisse seguir adiante, o baixinho o passasse e ele o seguisse até o posto. Mas o farol abriu e o gol bolinha branco em vez de ir em frente, ultrapassá-lo e transpor o cruzamento, fez uma manobra ilegal, virando à esquerda e pegando a mão certa da pista que cruzávamos. Ainda o vi rindo, orgulhoso de sua imoral infração. Joguei meu carro para a esquerda – lado que ficara vago na pista pela desleal manobra do baixote – ultrapassei o grandalhão do fusca e cruzei a trilha da fuga.
Olhei no retrovisor direito e tive pena do grandão incrédulo, com seu fusca progredindo lentamente, já tendo também transposto o cruzamento, buscando o gol branco pelo retrovisor. Parecia não ter visto a fuga do desgraçado. A cara de azarado virou cara de bobo e então tive raiva dele e raiva do baixinho. Raiva do trapaceado e do trapaceiro. Do trapaceado tive raiva porque eu me colocava, sem querer, na pele dele. Do trapaceiro tive raiva porque se deu bem, porque se orgulhava da própria trambicagem e porque agredia a crença que tenho na honestidade.
Revoltado e impressionado com o episódio mudo que presenciara, cheguei a pensar que aquele era um sinal de mau agouro para a viagem. Mas logo percebi que precisava tirar o pé do acelerador para não atropelar o futuro com falsas premeditações. Suave, serpenteei a estrada que me traria paisagens que nos grandes centros não se pode ver, disposto a fazer da semana de férias um marco na minha memória afetiva. Fez sol todos os dias.
5 comments
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November 18, 2007 at 5:49 pm
Fred
Caramba, Wagner! Que cena mais cotidiana e, mesmo assim, com uma surpresa mais desagradável ainda! Para eles, claro. Porque, de sua parte, rendeu um belo texto, com todos os dias de sol.
Abraços!!
November 21, 2007 at 2:14 pm
Lu Taddeo
Nossa, que raiva!!!
Raiva porque eu sempre começo ler o seus textos pensando que meu comentário sobre eles tem que ser crítico – sei que você sente falta disso. O problema é que gosto muito de seus textos e não vejo onde caberiam críticas! Saco.
Mas seu texto me deu muuuita raiva também. Me senti trapaceada. O mundo é muito sacana mesmo, me sinto ingênua de ainda ter fé na humanidade
November 27, 2007 at 6:42 pm
Maria Lígia
Mais um autêntico Wagner Hilário. Gostei muito, especialmente do final suave. Confesso que o início me deixou apreensiva, achei que vc, estourado que é, iria se meter na briga! Por pouco, né? Mas, ufa, o final foi lindo, eu diria… e não consegui de novo, como a Lu, achar uma falha aqui.
Beijos
Lígia
November 30, 2007 at 8:05 am
Érico Marin
Mais uma demonstração de uma mudança de estilo? Seu vocabulário está extremamente simples. Até suas metáforas se tornaram mais acessíveis (sem, no entanto, comprometerem a seriedade da sua proposta). Em “pára-choque”, por alguns momentos, não consegui encontrar o Wagner de períodos cuidadosamente dilapidados e palavras raras, mas não demorou muito até eu perceber que você simplesmente vestiu suas idéias com uma nova roupagem – talvez mais adequada à natureza delas…
November 30, 2007 at 10:42 am
Ana
Wagner,
Um acontecimento aparentemente tão conhecido de quem vive em uma cidade como a nossa, mas relatado por você ganha ares de novidade, devido ao seu estilo de detalhar e narrar maravilhosamente bem.
Beijos,
Ana