Por FELIPE MODENESE
Apesar de ser um jogo de oitavas-de-final da Copa Sul-Americana de 2007, o público de mais de 46 mil pagantes está batendo o recorde de público do ano e enfeitiça o estádio com muita vibração.
Uma passada no setor reservado aos torcedores do Boca mostra valentia. Cerca de 300 pessoas (segundo o Corpo de Bombeiros) bradam do anel inferior do Morumbi. Invocam: DALEE DALEDALE EO… DALEE DALEDALE EO…O som blinda argentinos radicados no Brasil, os que estão aqui só pelo jogo e alguns rivais incondicionais do São Paulo (incluindo alguns com camisetas corinthianas). Bradam um campo de som contra os tantos milhares de são-paulinos; entretanto, não os protege de tantas cusparadas e quaisquer outros tipos de objetos projetáveis, incluindo os que contêm líquidos. Alguns estão de capa-de-chuva, outros já estão ensopados… Valentes, bradam, invocam.
Já a arquibancada do Morumbi pulsa branco, vermelho e preto.
No clima da pressão inicial dos “donos da casa”, Leandro Bruno chuta para fora. Cada corte do time são-paulino provoca um pequeno espasmo no corpo da torcida. Um passe de calcanhar de Leandro ecoa em aplausos. Cada passe errado, um bravejo coletivo e xingamentos mais definíveis a curto alcance…
Na arena, os ânimos começam a se exaltar. Como o São Paulo perdeu por 2 a 1 na Argentina, este gol fora de casa permite que apenas mais um gol do tricolor classifique o time, segundo as regras do campeonato (gol fora de casa é o primeiro critério de desempate). Sendo assim, o São Paulo busca o gol e sufoca com violência as ofensivas argentinas. Um cartão amarelo sai pra cada lado. O time do São Paulo empunha o espírito competitivo da torcida atuante em gritos e xingos.
Os dois times alternam boas chances de gol. Os goleiros trabalham. Depois de uma grande chance do São Paulo, Rogério Ceni guarda a meta. Os torcedores mais comprometidos não conseguem sentar; os assentos incomodam; as pernas não persistem dobradas; alguns cruzam os braços, enchem o peito e expiram.
Ô Ô clap clap Ô Ô clap clap É TRI clap clap COLÔ
(Um cheiro verde queimado invade as narinas…)
Um lançamento para o bico da pequena área do Boca faz os braços dos vizinhos ficarem erguidos e descem, não sem antes deixar as mãos espalmadas na cabeça por alguns segundos.
Dagoberto, atacante do São Paulo, limpa dois rente à linha de fundo e arranca sorrisos na arquibancada. Ainda assim, o time não chega a uma chance clara de gol.
Por estar em vantagem, o time argentino encena no ar: as quedas são cênicas e a posse de bola é mantida com grande maestria catimbeira.
Entre acompanhar uma jogada com perigo de gol e chamar a atenção de possíveis clientes, um vendedor de salgadinhos caminha por um degrau da arquibancada. O fracasso da jogada permite a retomada das vendas, depois de algo que parece um transe futebolístico.
Termina o primeiro tempo encerado pelos argentinos e de inócuas chegadas são-paulinas. Os músculos relaxam; os olhos podem olhar ao redor.
No começo da segunda metade, o São Paulo reverbera os brados da torcida e sobe ao ataque. Na marca dos nove minutos, Aloísio, entrando na área, recebe um lançamento, mata no peito, rasga a defesa com truculência, solta o petardo e estufa a rede argentina. Um grande gozo explode a arquibancada; os espasmos ressoam num terremoto; a torcida é uma e está em pleno tremor de orgasmo coletivo.
U TRICO LÔO U TRICO LÔO U TRICO LÔO
Sob o feitiço do transe tribal, cada chegada firme do São Paulo ecoa a torcida; cada jogada ganha na zaga merece aplausos.
A cera do primeiro tempo transfigura-se em óleo fino de engrenagens. O Boca parte pra cima do São Paulo. Os argentinos não mais encenam. As mesmas faltas duras não machucam como antes. O time brasileiro assume o papel: encera o tempo, enrola, faz catimba (que, segundo o Houaiss: procedimento utilizado em certas competições esportivas e que consiste em prejudicar o desempenho do adversário por meio de recursos astuciosos e, às vezes, antiesportivos – E bota astúcia nisso!).
As pressões geram violência. Cotoveladas propositais enfeiam o jogo.
Um microfone de uma rádio colocado no meio da torcida do Boca surpreende: persiste a invocação DALEE DALEDALE EO… DALEE DALEDALE EO… Ele precisam acreditar na reação.
Aos 40 minutos, tumulto e empurra-empurra na área do São Paulo. Sucessivos escanteios do Boca sinalizam a pressão do time argentino. A vaia é ensurdecedora. Não conseguem o gol.
O tricolor continua a encenação e o jogo acaba.
O gol fora de casa do jogo na Argentina desempata e os argentinos estão fora do campeonato.
O organismo torcida dissolve-se pelas escadarias. Satisfeitos com o despacho dos argentinos, os elementos regozijam-se na volta para casa. Apesar de não se darem conta, fizeram parte de um gozo coletivo e de algumas outras propriedades emergentes exclusivas do futebol.
14 comments
Comments feed for this article
October 8, 2007 at 11:21 am
erika
Fala, Felipe!
Tava faltando mesmo um texto sobre futebol, por aqui.
Assistir a um jogo do seu time de coração, em um estádio lotado, é uma experiência incrível.
e quer dizer que você é são paulino??? logo vi, esse papo de “orgasmo coletivo”, só podia ser do povo do morumbi, mesmo, hehehe!
piadas a parte para não perder o espírito de rivalidade saudável no futebol. ah, e por falar nisso, ficou feio perder pro coringão, ontem?
só meu time mesmo pra jogar uma água fria em vcs, heim!?
parabéns pelo texto!
October 10, 2007 at 2:36 pm
Letícia
Oi, Fê!
eu não tenho lá muito tesão por futebol.
Mas, confesso, neste (con)texto, ficou atraente!
Beijo,
Lê.
October 10, 2007 at 3:07 pm
Duds
Biuzera,
Realmente foi uma guerra.
E seu texto traduz bem o que rolou.
Parabens, mano.
Abração
October 10, 2007 at 6:07 pm
Felipe Modenese
Fala Biiiiiiu.
Já estava contente com o resultado do jogo.
Agora, fiquei ainda mais feliz por vc ter conseguido expressar aquelas emoções, que normalmente só são entendidas por quem vivenciou aqueles momentos.
Valeu !!!
Parabens.
Abraço.
October 10, 2007 at 6:08 pm
Serjones
Esse texto foi um verdadeiro gol de chapa, meu placa!
October 11, 2007 at 9:44 am
okesley
Biu, parafraseando uma propaganda vinculada há tempos por aí, tem coisas que não tem preço: assistir o tricolor derrotar o Boca no Morumbi lotado…
Melhor que ganhar dos galinhas, que já nem tem graça mais…
Grande abraço Biu e parabéns pelo texto.
Oks
October 11, 2007 at 10:19 am
Marco A. de Araújo Bueno
Reputo (neologismo meu, à la Joyce),resuminte do meu estado d’alma pós derrotas consecutivas do SPFC)sua crônica
como “proesia”, ao modo do nosso mestre comum, o Nelson de Oliveira. Por solidário ao colega, entrego-me à memória do jogo comentado (ao qual não assisti; apenas gravei em VHS, em pé, plasmado à TV, com todos os espasmos e mãos espalmadas pelo rosto, dado à neutralidade como torcedor). A
propósito,quase bato a cabeça no teto quando, ao ler o parágrafo em que descreve o gol do Dagoberto, contornando os clichês habituais e potencializando a tensão da coisa “orgânica”,concentrei-me nos aspéctos lingüísticos do texto. Devo apontar um erro de estilística: a oração “Rogério Ceni guarda a meta”, além de incorrer em redundância, carece dos tropos adicionais demandados pelo “referente”, coisa que lhe é familiar.Mas você se redime com a inventividade da bela imagem que opõe a “cera” ao “óleo fino”: brilhante ! Tomar a torcida como um corpo orgânico” que, ora convulsivo, ora pateticamente reativo (caso da torcida deles, nesta minha ótica neutra)- é isso que retira do texto o comezinho da crônica esportiva e o eleva ao patamar literário. Caro, você está de parabéns!
Fico na esperança de você, agora o nosso Foca-Bill, arranjar espaço na área para que eu, abstraído de quaisquer pluridos tendenciosos (como pode notar)consiga emplacar, a título (ôpa!)de correção ao seu eqüívoco estilístico,o meu “O Ceni e Outras Cenas”. Uma croniqueta mansa, sem paroxismos torcedolentes, que já parte do poema do João Cabral. Aquele em que ele escreve que “(…) A bola não é inimiga/ como o touro numa corrida”. E termina com o impagável versa: “(…)Dando aos pés/ astúcias de mão”. Isso serve para as reposições de bola do Rogério, mas é a melhor metáfora para expressar suas habilidades de escritor.
Saudações Trico,digo literárias !
October 11, 2007 at 10:33 am
maricrtorres
Querido FÊ: A paixão é o grande motor da arte. Sua descrição passional da coreografia em campo e da reação da torcida contagiam o leitor e o transportam ao local, entre os deuses do estádio. Que mais se pode querer de um texto? Aproveito para te recomendar ler “Estrela solitária,um brasileiro chamado Garrincha” (1995) do jornalista Ruy Castro (editora Cia. das letras). Fica claro aí o papel que o futebol tem no inconsciente coletivo nacional. Escrever se aprende escrevendo, então “just do it”. Forte abraço do tio,
Mario.
October 11, 2007 at 11:04 am
Dorini
O texto conseguiu transformar um simples partida de oitavas de final da Copa Sul-americana em uma batalha épica.
October 11, 2007 at 6:11 pm
Fred
Meu caro Felipe, Se a imprensa trata-se o futebol com a qualidade desta abordagem, certamente eu gostaria mais do esporte. Parabéns por tornar colocar arte num esporte que vem se esquecendo do significado dessa palavra.
Abraçosss
October 11, 2007 at 9:18 pm
Mama
Querido Felipe,
Tenho acompanhado essa torcida São Paulina ao vivo em casa e posso garantir que os ânimos fervem por aqui. Sei exatamente como é toda essa emoção que você consegue expressar tão bem. Tenho muito orgulho de você. Parabéns!!!!
October 11, 2007 at 9:30 pm
Dad
Oi Felipe,
Lendo seu relato sobre a partida brilhante entre São Paulo e Boca no Morumbi, transformo-me num torcedor presente no estádio e vivo todas as emoções que você descreve tão fielmente.Futebol é realmente um paixão do brasileiro.Viva o São Paulo , saudações tricolores!!! Parabéns pelo texto.
October 14, 2007 at 4:57 am
Ana
Felipe,
Não me interesso por futebol, mas seu texto foi muito bem escrito, as descrições de uma partida clássica prenderam minha atenção, adorei!
Abraços,
December 21, 2007 at 4:52 pm
Wagner Hilário
É mesmo… Cê é torcedor do São Paulo.
Desculpa. Fiz um comentário ao seu comentário a um texto meu que revelou que não havia lido este texto (entendeu?)…
Bom, devo dizer que, não fosse a vitória do São Paulo, seu texto seria ainda melhor.
Escrevo isso porque sou um conrintiano moderado, como bem sabe.
Abração.