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Por LUCIANA NORONHA

perda
Por detrás das grades de uma cela da cadeia pública de Valinhos, não há nada para fazer a não ser esperar. Miguel* costumava dizer que não tinha nada a perder, mas há algum tempo perdera o emprego – era mecânico em uma oficina de respeito – e agora havia perdido também a liberdade. Ele aguardava seu julgamento em regime fechado, após ser preso em flagrante por assalto à mão armada. O ex-patrão lamentava o destino de Miguel que, segundo ele, havia se envolvido com drogas. “Os irmãos dele são todos muito gente-boa, confiáveis. Este foi o único que se desencaminhou”.

medo
À noite, Maria* não consegue mais olhar para o lado de fora das janelas da cozinha, e se apavora ao encarar o quintal a partir da porta de vidro da sala de estar. Passou a cobrir todas as janelas com panos para evitar os sustos constantes, causados por movimentos de luz ou pelos panos de chão pendurados no varal, que teimam em balançar ao sabor do vento. Quando, sem querer, seus olhos se voltam para o lado de fora, o coração dispara, as mãos suam e ela sente um nó no estômago. Depois do assalto, Maria abandonou a velha mania de ir ao supermercado à noite e sente que, após o pôr do sol, as horas se tornam longas.

prisão
João, o marido de Maria, sentiu muito medo durante o assalto, e continua a sentir, embora não goste de admitir. Após o acontecido, sua primeira reação foi a decisão de deixar aquela casa, mas depois ele mudou de idéia. Instalou grades nos vidros da porta social da casa e planeja tomar outras providências, como subir os muros e instalar cercas elétricas em todo o entorno do terreno. Detestava lembrar que, naquela noite, ele e sua família haviam se tornado prisioneiros dentro de sua própria casa e que, de certo modo, continuavam a sê-lo, pois agora ele se via obrigado a instalar grades por todo lado.

*

Naquele dia, Maria entrou com o carro na garagem, fechou o portão e abriu o porta-malas para tirar as compras. Pegou algumas sacolas e levou-as para a cozinha, deixando a porta da frente aberta para poder ir buscar o resto das compras. Mas não houve tempo. Quando voltou da cozinha, deu um grito. Três homens armados entravam em sua casa pela porta da frente, anunciando o assalto. Um deles determinou que todos deitassem no chão da cozinha.

João, Maria e seu filho Pedro*, de 22 anos, estavam sob a mira de armas. O homem que anunciou o assalto era Miguel, que parecia ser o lider do grupo. Ele portava um revólver calibre 38, e foi o primeiro a invadir a casa. Os outros dois assaltantes usavam máscaras e portavam armas tão velhas que nem pareciam reais (mas eram). Confusos e nervosos, os bandidos discutiam o tempo todo sobre como o assalto deveria ser conduzido. Um deles estava muito alterado e fazia ameaças. O outro dizia às vitimas que nada de mal iria acontecer.

Os invasores cortaram o fio do telefone da sala de jantar – deixando as outras quatro extensões telefônicas da casa em perfeito funcionamento – e determinaram aos moradores que fossem para o banheiro, em silêncio. João sentia o cano frio do revólver encostado em sua nuca. Ao pedido para fazer silêncio, ele respondeu que ficaria quieto, mas pediu por favor para que abaixassem a arma que permanecia apontada para sua cabeça. O bandido reagiu com truculência, fazendo ameaças que pareciam ter sido inspiradas nos diálogos dos filmes policiais, do tipo “cale a boca ou eu estouro os seus miolos”. Outro perguntou:

— Cadê o ouro? E os dólar?

Um dos invasores esbravejou após perceber que os moradores da casa não tinham o que eles queriam: nem dólares, nem dinheiro na carteira ou em qualquer outro lugar. Após roubarem um pequeno porta-jóias, um relógio, uma câmera fotográfica quebrada e três celulares, comunicaram Maria de que eles a levariam no carro. O assalto se transformaria em sequestro. Maria rezava.

A campainha toca. Irritados, os ladrões querem saber quem chegou, mas ninguém sabe responder, porque a família raramente recebe visitas. Ao avistar um homem à paisana parado em frente ao portão da casa, os bandidos resolvem fugir às pressas no carro da família, desconfiando que a polícia poderia estar a caminho. E estava. Quem havia tocado a campainha era um vizinho, que desconfiou do assalto e chamou a polícia.

Ao cruzar a entrada do bairro, os ladrões se deparam com uma viatura, que acabara de ter sido informada sobre o carro roubado. Tem início uma longa perseguição policial, que só termina quilômetros adiante, quando Miguel, que dirigia o carro roubado, bate em um barranco. Ele tenta correr, mas é preso em flagrante. Os outros dois assaltantes conseguem fugir, mas o carro é recuperado. Dentro do porta malas, a polícia encontra abacaxis, tomates e cebolas.

*Os nomes dos personagens foram trocados.

Por LUCIANA NORONHA

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Depois de passar uma semana na cidade de Bonito (MS) – cujo modesto nome não expressa a proporção de suas paisagens naturais – eis que chego ao Pantanal. O ônibus de linha despeja alguns turistas no “Buraco das Piranhas”, porta de entrada para diversas fazendas pantaneiras à beira do rio Miranda. Somos cinco, todos vindos do albergue da juventude de Bonito: dois rapazes holandeses, um jovem casal vindo da Austrália e eu. Os dois rapazes são tão altos e loiros como se espera que sejam os holandeses. A garota australiana tem a pela clara, cabelos ruivos e sardas muito simpáticas, e seu marido era loiro e grandão nas medidas, o que lhe conferia um andar levemente desengonçado.

Quando o ônibus parou, Toninho já estava nos esperando, e se apresenta. Ele nos levaria de camionete até a fazenda “Passo do Lontra”, onde ficaríamos hospedados. Toninho é muito bem humorado e não pára de falar um minuto, de forma que eu passo a ser a tradutora oficial português-inglês-português durante o translado. A viagem de quarenta minutos por estradas de terra, pantanal adentro, impressiona: me sinto uma gringa, conhecendo um Brasil distante e incrivelmente verdadeiro. Mais real do que a Avenida Paulista ou o Cristo Redentor.

Ao chegar na fazenda, somos recepcionados por Johnny, que tem nome e fisionomia diferentes do que eu imaginava para um pantaneiro. Ele é moreno, baixinho e atarracado, e tem os olhos levementes puxados, revelando alguma ascendência boliviana (apenas três horas de viagem nos separam da fronteira Brasil-Bolívia, em Corumbá).

– Hello, hello, hello! Nice to meet you. My name is Johnny, I will be your guide here in Pantanal. Now, I will show your room. Please, follow me.

Johnny domina o inglês tão bem quanto monta a cavalo, apesar de não saber ler nem escrever em português. Entretanto, as palavras pronunciadas por ele são acompanhadas por uma cadência e um senso de humor tipicamente brasileiros. Obedecemos suas instruções e o seguimos por sobre as palafitas. A fazenda fica à beira do rio Miranda, e todas as construções ali devem ser erguidas acima do solo, para resistirem aos períodos de cheia. Quando o rio transborda, só é possível sair das casas de barco.

Porém, nesta época do ano, tudo o que vemos abaixo das palafitas é a grama verdinha. Durante o ano de 2007, o Pantanal tem passado por um período de estiagem e seca especialmente rigoroso. Em outubro já fazia sete meses que não chovia pra valer. “Às vezes caem uns pingos”, alguém conta, mas a chuvinha rala não é suficiente nem para refrescar as plantas ou dar de beber ao gado, que definha e morre às beiras de estrada.

Chegamos ao quarto em que ficarão hospedados o casal australianos e eu. A divisão dos quartos não me incomoda, pois já havíamos nos conhecido muito bem durante nossa estadia em Bonito. Assim como eu, eles parecem não se importar com a simplicidade do quarto ou o chuveiro frio. Enquanto Johnny nos apresenta a fazenda, pergunto sobre os outros visitantes. Ele me responde em português.

– Por enquanto tem cerca de quarenta pessoas aqui, mas amanhã deve vir mais gente. Todos estrangeiros. Tem só mais uma moça brasileira ali, pescando. O nome dela é Rosa.

Durante o almoço, conheço os outros visitantes, vindos dos mais variados lugares, do México à Finlândia. A maioria deles está viajando em direção à Cordilheira dos Andes, e pretende seguir viagem para Corumbá – e de lá para a Bolívia. Após alguns tropeços no inglês, que me deixam pouco à vontade, me vejo buscando desesperadamente a única turista que fala a minha língua por ali. Rosa é carioca, de modo que em alguns minutos já estamos batendo papo animadamente. 

Após o almoço, saímos em um barquinho pelo Rio Miranda. O guia do barco é um moleque de vinte e poucos anos, moreno de sol, que conduz o barco e nos alerta, em inglês, para os animais próximos a nós. Seu olho aguçado é capaz de ver um macaco ligeiro ou reconhecer uma espécie de passarinho há dezenas de metros de distância.

Carcarás sobrevoam nossas cabeças e tucanos fazem pose para as fotografias, como se tivessem consciência de sua exuberância. Os tuiuiús parecem tímidos, apesar de seu tamanho e do nada discreto papo vermelho que exibem. Andam beirando as margens cuidadosamente, como se experimentassem a água fria. As ariranhas pescam em grupo, emergindo com um novo peixe a cada investida e segurando cuidadosamente sua refeição entre as patas, como se saboreassem um hambúrguer. Fico sabendo que as ariranhas são muito mais perigosas para os seres humanos do que os jacarés.

– O tempo todo vemos casos de grupos de ariranhas selvagens que matam pessoas. Elas não comem carne humana, matam só por matar. Quem come depois são as piranhas.

Aliás, o rio Miranda é infestado de piranhas. Ao lançar uma vara de pesca com um minúsculo pedaço de carne na ponta, não é preciso esperar mais do que cinco segundos para puxar uma delas. O problema é que elas escapam e ainda levam a sua isca.

Ao fim da tarde, o calor escaldante começa a diminuir, e o barquinho em que estamos retorna para a fazenda. O sol está começando a se pôr, e faz reflexo sobre as águas escuras do rio. O horizonte amplo sobre o mato seco e o sol já bem baixinho pintam o céu de vermelho. Por um instante, me sinto parte da paisagem. 

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Por LUCIANA NORONHA

Zé morava na Barra Funda, em frente ao metrô. Quer dizer, morava na entrada do metrô, em uma pracinha de onde surge a rampa de acesso ao terminal, pisoteada diariamente por milhares de passantes, indo e vindo o tempo todo. Tinha muitos amigos por ali, entre taxistas que tinham o local como ponto de partida e chegada, policiais que fazem a segurança do local e trabalhadores, como vendedores de passes de metrô, cachorro-quente e pães de queijo.

Tantos amigos podem ser explicados por seu carisma natural e seu focinho simpático, adornado por orelhas compridas que não se entendem: quando uma está dobrada, a outra está em pé, o que lhe confere uma fisionomia ao mesmo tempo desconfiada e curiosa. Seu corpinho magrelo e as costelas saltadas são camuflados por pelos compridos e finos. É branco e tem grandes manchas pretas espalhadas pelas costas e orelhas.

Seu círculo de amizades não era composto só por gente, mas também por outros cães, companheiros de longa data que viviam também ali, dividindo as mesmas dificuldades: noites de frio e de chuva, agressões gratuitas, pratos de comida deixados pelos taxistas, restos de esfirras ou um pão de queijo derrubado por descuido. Moleque e Negão eram seus amigos mais próximos.     

Mas chega o dia em que uma velha conhecida de Zé, moça simpática e engraçada, o enfia no banco de trás do carro e o leva pra morar com ela e o marido, na Aclimação. Seriam uma família. Adotado, Zé toma banho, e revela a brancura de seus pêlos, antes escondida pelo marrom encardido da rua. A moça compra pra Zé uma ração de boa qualidade, que ele estranha, provavelmente porque nunca havia experimentado prato tão refinado. Depois come e gosta. Vai então ao veterinário, ganha ossinhos, afagos e coleira. Mas parece que nada daquilo era o suficiente.

Os dias passam e Zé fica cada vez mais agoniado. Quando a moça e seu marido vão trabalhar, ele fica sozinho e se desespera, perdendo as tardes em tentativas de pular o muro da casa. Sem sucesso. Zé não se acostuma a viver entre paredes, ele quer a liberdade, os odores e a sujeira das ruas. Os passeios matinais e vespertinos não parecem ser suficientes. Quando a moça se dá conta da agonia de Zé, ela o coloca novamente no banco de trás do carro e o devolve à Barra Funda.

Mas ele tampouco se acostuma à vida de outrora. Quando a moça passa pela praça, ele vai atrás, seguindo-a até o trabalho, seguindo-a indefinidamente, seguindo-a até que ela perceba que ele quer mesmo é ir com ela. Zé podia até não saber disso, mas vivia um conflito interno, desses com os quais estamos acostumados. Por fim, ele volta para os braços de sua família, na Aclimação.

Disposto a encarar sua vida nova, Zé conforma-se com a solidão durante as tardes. Se acostuma com o incômodo dos banhos e dos remédios enfiados goela abaixo ou macerados junto à ração. Se acostuma até mesmo à coleira.

Enquanto isso, seu velho amigo Negão é capturado pela carrocinha e levado ao centro de zoonoses após morder um rapaz que veio com brincadeiras sem graça. A moça – sim, a mesma – resgata Negão de lá, livrando-o da execução sumária que viria dali a dois dias. Poucas semanas depois de retornar do Centro de Zoonoses, Negão morre por causas naturais. Alguma doença, ninguém sabe ao certo. Ele já era mesmo velhinho.  

Alheio ao destino de seu amigo, Zé aprende a sentar e a cumprimentar os conhecidos, erguendo educadamente a pata dianteira, e recebe ossinhos em troca. Ganha gravatinha, almofada pra dormir, brinquedo e até sapatinho – virou um cachorro de família, e se porta como tal. Já não aceita comer qualquer porcaria e late para estranhos, defendendo seu território.

Alguns dias atrás, a moça levou Zé para visitar sua antiga moradia, na Barra Funda. Lá estavam os taxistas, seus amigos, que o afagam e admiram seus pelos sedosos, recordando o cãozinho encardido do passado. E lá também estava Moleque, seu velho companheiro, simpático e sujinho como sempre!

Moleque reconhece Zé e balança o rabo pra ele, demonstrando contentamento em revê-lo após tanto tempo. Se aproxima para cheirá-lo, e afasta-se num pulo. Zé dispara a latir para Moleque, como se ele fosse qualquer vira-latas estranho por aí. Late enraivecido, e a moça precisa dar uma bronca em Zé. Moleque fica assustado. Sua fisionomia se altera, ele esconde o rabo entre as pernas e se afasta.     

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