Por FRED LINARDI

Vocês se lembram da Dona Íris, filha da Dona Maria e mãe da Vânia? No ano que acabou de passar, ela teve um inesperado encontro com o passado e agora ela caminha deixando um pouco mais do passado para trás. Na verdade, não é possível dizer que o passado toma outro rumo senão o do seu próprio destino avesso. Por outro lado, é tão improvável apontar que o que passou está fadado ao esquecimento. Mas às vezes o horizonte se amplia, mesmo que se afunile fisicamente. E é neste ponto que a vida de Dona Íris se encontra.

Há cerca de 20 anos ela se mudou com seu marido para a casa que hoje se encontra quase vazia. Um terreno com quase mil metros quadrados, com direito desde ao luxo de uma piscina até a singeleza de um pequeno poço de água, daqueles que parecem antigos e dão um toque bucólico ao jardim. Os dois andares, com um piso a mais entre eles, ao canto da planta da casa, sugerem a imponência de uma mansão que, situada em um bairro residencial na mesma cidade de Americana, na verdade foi atenuada pela atmosfera familiar, onde netos viviam disputando a vaga para saber se seriam os privilegiados para passar o final de semana por lá.

Dona Íris vai se mudar. Está de mudança. Seu Délcio a deixou há quase dez anos, de uma hora para outra, assim: acordou, tomou seu café, caminhou de acordo com a orientação de seu cardiologista, voltou para casa, sentou-se na cadeira da varanda para ler o jornal e uma dor interrompeu sua leitura. O tempo que teve foi suficiente para ligar ao seu filho e dizer que seu peito doía. Mas faltou-lhe algo mais. O que lhe faltou foi tudo ou foi nada. Sobrou a casa, grande, com degraus para cima, para baixo, corredores e portas. Foi rápido.

Dez anos se passaram rapidamente. Por fim, a dona da casa decidiu-se mudar. Vai para um apartamento no mesmo prédio onde mora sua filha.

Um apartamento pode ser mais seguro. Sem escadas, sem risco de assaltos, sem ficar sozinha numa casa escura na calada da noite. Mas colocar tudo o que tinha na casa para um espaço com pouco mais de 90 metros quadrados, aí complica. O que descomplica é o desprendimento de Dona Íris: pegou tudo o que precisava e o que cabia no apartamento. Quanto ao restante (mesinhas, sofás, talheres demais, jogos de mesas, tapetes, quadros, panelas, móveis de canto, mesa de centro e um monte de coisa que surgiu do esquecimento…). Dona Íris abriu a casa. Vendeu o que quiseram comprar. Casaco de frio na capa, “virgem!”, ela notou. Mesas e cadeiras. Doou o que quiseram levar. Ainda há peças de roupas separadas, que sobraram e estão separadas em um dos quartos vazios “aqui é o brechó”, diz ela em seu característico tom leve e engraçado.

Entre os cômodos, estão vasos e quadros do Japão, peças de Hong Kong e da Argentina. Em um canto, dentro uma caixa de sapato, fotos de álbuns das viagens que retratam o casal em lugares de onde muitos desses objetos foram trazidos. Evidente que os álbuns não fazem parte dos objetos e quinquilharias que serão passados adiante.

No momento, a dona da casa ainda não pode morar em seu novo apartamento. Apesar de salas e cozinha já estarem organizados e prontos para serem usufruídos como uma casa em si, ainda falta chegar a nova cama, que será substituída pela velha cama de casal. A troca para uma de viúva, que ainda está sendo pintada, permite o conforto no quarto do apartamento, com menos espaço. Dona Íris aguarda sua mudança, sua cama. Enquanto isso, arruma os pertences que ainda estão em algumas caixas e cantos da velha casa. À noite, às vezes dorme por lá e outras vezes dorme na casa de sua filha, no quarto andar do prédio onde irá morar.

Na transição entre passado e futuro, Dona Íris está mudando. Saiu da casa para um apartamento com sacada. Ampliou sua vista, estendeu seu horizonte.